Heloísa não sabe se está louca. Talvez, não saber da própria loucura seja dela sintoma. Ou lucidez extrema. Qual a diferença? Ela vê coisas que, ao que parece, só ela as vê. Percebe coisas sofridas e com elas se espanta. As percebe e pensa. Ou pensa através delas? Ou por elas? Heloísa não sabe.
Vê com clareza coisas que por lhe serem claras, deveriam ser claras para todo mundo. E não vê coisas que todos tomam como claras e, por isso, ela também deveria ver com clareza. Já ouviu falar de loucos que veem o que ninguém mais vê, mas louco que não vê?…
Ela não vê Jesus comprando arma. Nem pistola. Nem espada, adaga, tacape ou lança. Ouviu a vida inteira que Jesus é amor e que arma nenhuma é amorosa. Ou não ouviu? Alucinação? Se ouviu, do jeito que ouviu, mais gente deve ter ouvido. Mas parece que não. Gente que reza e fala de Jesus o tempo todo não acha estranho Jesus armado. Gente de bem, que espalha o bem com arma. Heloísa não entende.
Tem medo dessa gente de fervor e chumbo. Será que louco sente medo? Ou sentir medo de coisas medonhas seja sanidade? Pode ser que o tiro recebido na cara, dado pelo homem de bem irritado com a fechada no trânsito, seja amor. Nada a se temer. Temor louco de tiro amoroso. Será? Heloísa não sabe.
Heloísa gosta de onde vive. Da terra e das coisas do lugar. Gosta do que se canta e escreve por aqui. E gosta dos artistas daqui. Mas gente que não tem a loucura dela não gosta deles. Dizem que são mercenários. Como poderiam encantar falando de coisas encantadoras se seu único sentimento fosse o vazio da ambição? Heloísa não entende o que encanta essa gente desencantada com os encantos da arte. Ou encanto é loucura?
Deve estar louca faz tempo. Estudou naquela época em que se cantava o hino nacional na entrada da escola. Ela achava que amar a pátria precisava mais do que ficar parada vendo uma bandeira escalar o mastro. Mais importante seria amar a gente e a terra daqui. E obedecer às leis que protegem a terra e a gente daqui. Mas estas devem ser apenas ideias estranhas da sua cabeça doentia.
Pessoas normais não são como ela. Amam as cores, marchas e militares, mas detestam a gente e a terra daqui. Amor estético. Seletivo. Não vê problema em assassinato de índio, nem preto, nem de jornalista e de indigenista. Não tem problema nem quando é vida de gringo, que vale mais que as daqui. Morte de quem defende a terra é “bem feito!”. Deram mole. Heloísa se choca com isso. Choque, certamente, de gente doida.
O pai de Heloísa era militar. Daqueles que por ser certinho e rigoroso em tudo, a fazia acreditar que todos os militares fossem assim também. Outro devaneio de uma louca desenfreada. Heloísa os descobriu patriotas de canção. Indiferentes à ilegalidade amazônica e aos crimes que destroem a floresta, polui rios e mata pobre, preto e índio. Mas preocupadíssimos com urnas eletrônicas em que índio, pobre e preto podem, uma vez na vida, dizer o que pensam. Que loucura achar que todo mundo é humano!
E se for o contrário do que pensa, todo mundo louco e só ela sã? Seria possível? Mas não seria, também, uma espécie de loucura sofrer por não ceder a mente às loucuras que seus compatriotas com orgulho ostentam? Heloísa não sabe. Deve estar mesmo louca. Tão louca que sequer sabe se quer curar-se.
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Ilustração: Mihai Cauli